quarta-feira, 27 de junho de 2012

Sépia 3


Uma sombra cinza se estendia por cima de mim.
Uma maldita silhueta em minha frente, encarando-me por entre os olhos.
Uma aura negra perfurava a minha alma, fazendo com que a grama, abaixo de mim, tremesse. Queria olhar para cima, e encarar aquele ser abominável em minha frente, porém simplesmente não conseguia.
Eu sabia quem tinha matado eles...
Eu sabia quem tinha matado todos eles.
Não fora uma acidente.

-Quando as luzes se vão e abrimos os olhos-


Sentia a sua respiração quieta e amena a cada pulsada de seu coração.
Sentia aquela aura penetrante pairando pelo ar, tão densa quanto um bolo de fumaça cinzenta.

- Olá - Disse o ser a minha frente enquanto eu ainda permanecia com a cabeça baixa - Temes a morte garoto? - Terminou ele dando um ar sarcástico.
- Na verdade.... Temo mais a vida senhor - Respondi.



Um longo e pausado silêncio recorreu o sussurrar do vento.

- Não me temes? - Perguntou ele, ainda sarcástico.
- Depende de quem sejas.
- Se eu for a morte?
- Se eu conheço tão bem a vida, senhor, significa que algum dia também conhecerei a morte, não há um porque d'eu teme-la.
- Se eu for a vida?
- A vida já somos todos nós- Larguei um riso constrangedor.
- E se eu for você?
Essa pergunta demorou mais para ser respondida. E fora apenas as minusculas gotas de chuva que cortaram o silêncio daquele curto momento.
- Isso seria o meu pior pesadelo - Respondi conseguindo olhar pela primeira vez a escuridão da qual seus olhos se encontravam.

      -Uma estranha familiaridade-

- Pois e se eu dissesse que o seu pior pesadelo está andando por essas ruas matando os seus sonhos?

Um certo ódio se emaranhou nas entranhas da minha barriga.
De súbito como uma faísca.
Porém ardeu, lentamente, como uma chama.
Queimando, rastejando por dentre meus os pulmões.
Querendo sufocar-me à loucura.
Eu havia entendido o que ele quis dizer.

Desta vez pude ver os olhos por baixo daquele maldito capuz.
Olhos que eu jamais desejaria ter visto.
Olhos não negros, mas castanhos... Como os meus.

O encapuzado por dentre um mudo de cinzas em sépia empurrou o corpo de Sulcá para o chão que bateu sua cabeça com tudo  na opacidade daquela grama. Mais sangue.
Tentei inutilmente ser rápido para segura-lo, só que o maldito a minha frente fora mais em derruba-lo.
Ele se curvou, virando-se de costas para mim.

-Minha chance-

Me levantei.
- Deixou o ódio te consumir? - Ele perguntou. Não respondi.
- Tire o capuz - Sugeri ameaçadoramente. Ele parou de andar.
- Porque o faria? - Continuava de costas parado a uns cinco ou seis metros de mim - Aqui em baixo, garoto, não há um rosto como você o imagina, aqui em baixo há um sonho, um pesadelo, do qual você não suportaria ao menos sentir a presença, quanto mais o ver - Terminou aquela sombra olhando pra trás com um certo desdém.

-Ódio-

Dei um passo adiante, enquanto o orvalho se contorcia em agonia.
Suspirei fundo, enquanto o vento sussurrava em dor.
Derramei uma, ultima, lágrima, enquanto a chuva chorava em prantos
Outro passo, desta vez correndo contra aquela silhueta, contra aquela sombra.
Sentia todas aquelas agulhas batendo em mim, indo em contra, desesperadamente, aos sopros da brisa.

-Morra-

Contrai o meu braço para trás, pegando um impulso absurdo, inimaginável.
O cenário se dá tremido, como se uma câmera estivesse retomando o foco.
Como uma foto panorâmica  deslizando por entre dois dedos.
Mais um passo e aquele assassino já estaria no chão, também em prantos.
Mais um passo, apenas, para que aquele ódio terminasse, e se esvaísse. 
Somente mais um.


O passo foi dado.

Porém o ódio não se esvaiu.
Eu necessitava mais.

Aquela sombra se despejou na grama, totalmente indefesa, através de escombros de suor e de fagulhas de sangue

Como se não esperasse por aquilo.

Me joguei em cima dele.

- PORQUE? - Gritei com todas as minhas forças.

Mais outro ódio desferido.
Mais um.
Mais outro.
E Outro.

Despejava socos e mais socos em seu rosto, sem parar.
Queria me livrar daquele sentimento, daquele receio de ver tudo passando por entre os dedos, e não poder fazer nada.
Eu iria! Ah e como iria.

Fui dar um ultimo soco.
Me livrar daquela ultima gota de ódio.
Me satisfazer por completo.
Quando, por meio dos mesmos escombros do suor vermelho.
Ele segurou a minha mão. Simples, como se fosse a coisa mais fácil do mundo.
Apertou aqueles dedos mal ajustados contra o meu punho, que se esgueirava insanamente procurando forças de alguma outra maldita fonte.

- Eu sou um pesadelo, você não pode matar os pesadelos, eles fazem parte de você, assim como os sonhos, eles transformam você no que você é... Eu estou aqui, garoto, porque um dia você me quis aqui, porque um dia você dormiu, e no lado de lá, me convidou para passar por essa, tão familiar, brecha, essa falha entre esses dois mundos que para sonhos ou pesadelos, como nós, era proibido. Eu fiz tudo o que fiz, porque um dia, você me ordenou que fizesse, porque um dia, no mais intimo de sua mente, você sonhou, só estou cumprindo o meu dever, o dever de um pesadelo. Não se esqueça, eu sou você, e ninguém mais. Se isso tudo aconteceu, a culpa é Sua, e de ninguém mais - A uma hora dessas, aquela ultima lágrima de ódio deu lugar a, talvez, uma pequena nostalgia. Estávamos nós dois, estirados na grama e no seu pouco esforço para defender o meu ultimo golpe, o seu capuz caíra por entre os ombros. Na minha frente, agora, se estendia uma copia literal do meu rosto, exatamente o mesmo, e o mais incrível, ele estava sorrindo - Porque lutas contra algo que você mesmo criou? Porque lutas contra uma imaginação real sua?

- Porque eu não sabia que aquele sonho ia gerar tantas consequências, eu não sabia que ele poderia se tornar, de alguma maneira real.

- Quando você começa a escrever sobre algo, quando você começa a sonhar sobre algo, ou até mesmo pensar sobre esse algo, você o dá o direito de que se torne real. Quando o ultimo ponto é colocado, você o encerra perpetuamente neste mundo, este mundo de sonhos. Mas quando você não o faz ele fica disponível para que alguém o continue, ele fica aberto para novas imaginações, para novos sonhos. E são assim que as famosas brechas se abrem, são assim que nós, seres de vossa imaginação, possam sair, e terminar o que escrevestes ou sonhastes para vós. Nós somos assim, garoto, somos criados e desenhados para isso, e nada, nem ninguém nos mudará - Ele tossiu um pouco - Se assim o queres, lembre de colocar um ponto final, sempre, ou então sofra e assuma as consequências deste mundo em sépia, que acabastes de criar.

Uma linha de sangue escorreu por entre os meus lábios.

Ouvi uns barulhos mais agitados do que os do sépia e me virei para cima, procurando vê-los.
Lá se encontrava Bandeira, a alguns muitos metros, correndo por dentre a grama baixa.
Atrás dele, alguns médicos, alguns carros, algumas ambulâncias.

Quando me virei novamente para o meu pesadelo, abaixo de mim, ele havia ido. Ele havia voltado, na verdade, para o mundo em sépia do qual pertencera toda uma eternidade.
Me estirei no chão de bruços, e lá permaneci,
Sentindo as solenes gotas de chuva acima;
O doce uivar da brisa por entre o vento;
E a humilde umidade do orvalho, abaixo desconcertado.
Enquanto uma camera nitida se afastava, por cima, mostrando um mundo onde a sépia não mais reinava;
Dando lugar a algumas cores distantes e opacas.

- Nunca mais esquecerei algum misero ponto final - Pensei ao escutar Sulcá começando a tossir sangue e resmungar enquanto Elise deveria estar fazendo o mesmo - Tudo estava voltando ao normal - Pensei ao inspirar o ultimo suspiro daquela noite




- Fim -

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