segunda-feira, 18 de junho de 2012

Sépia 2

- Cara... - Disse uma voz por telefone - Ta ai? - Parecia um tanto quanto desesperado.
- Diga...- Saiu apenas uma única palavra pálida da minha boca.

Me era permitido escutar o som abafado de alguns poucos carros passando, o som das pesadas gotas de chuva batendo contra o asfalto, contra às poças e à outros objetos e por fim dava pra sentir uma respiração um tanto quanto ofegante do outro lado da linha.

- ME ESCUTA! - Gritou.
- Sulcá?
- Eu cheguei... Na pizzaria - Uma voz embolada, ansiosa pra sair de sua garganta - Estavam todos mortos - Por dentre todos aqueles tons amarronzados um calafrio percorreu a minha espinha - Todos eles! Engasgados, cuspindo sangue.
- Elisa morreu... - Disse escutando sua voz fraquejar - Do mesmo jeito.
Um longo e simulado calafrio percorreu as verberas de cada um de nós, dando um tempo ao silêncio constrangedor, um silêncio apenas para vozes.
- O que você vai fazer? - Perguntou ele com uma voz menos agoniada.
- O que Você vai fazer?
- Não faço a minima ideia.
- Nem eu.
- Ligarei 119.
E assim a ligação foi cortada.


E lá permaneci, observando um cadáver já pálido.
Me perdendo em pensamentos, assim como a chuva se perde leigamente ao escorrer por entre um bueiro.
Afastando qualquer maldito pensamento horrorizante.
Jurando para que aparecesse alguém.
Jurando forças para levantar.
O celular, em minha mão vibrou mais uma vez.

- Uma mensagem -

- Me encontre na praça - Li em voz alta.
Levantei-me, com um certo esforço.
Senti uma leve dor na altura do joelhos, mas deveria ser por estar sentado por muito tempo. Coloquei minha mochila, que antes repousava no chão apoiada em uma cadeira vazia, no ombro só e dei um passo em direção a Elise.
Suspirei.
Com dois dedos fechei os seus olhos, até agora insanamente abertos.
E andei com passos largos, pela longa calçada molhada.
Não me importei de me encharcar.
Não me importei de não olhar pra trás.
Simplesmente não me importei.

A praça era perto dali, só tive que atravessar algumas penumbras escondidas por becos de casas e de diversas outras construções, cheguei no ponto de ônibus, aquele mesmo do qual tínhamos soltado, enquanto, a chuva, talvez por compaixão, diminuía o seu ritmo cordialmente, porém permanecia ainda ameaçadora ao ponto de não ter ninguém em pé nas ruas, e muito menos na praça.

Olhei, inutilmente, para os lados para ver se vinha algum carro, atravessei a rua com passos largos e me deparei com um gramado verde opaco, que se estendia por alguns metros. No meio, alguns bancos de madeira, mesinhas de varanda, algumas barracas, um parquinho colorido, porém saturado, para crianças mais ao canto. Avistei Sulcá sentado em um dos bancos, exatamente no meio da praça

Aproximei-me silenciosamente, apenas pisando naquela grama úmida e desformando aqueles orvalhos magníficos, que agora, sob a fraca luz da lua, não tinham a minima importância.
Ele repousava sentado, com os braços esticados e apoiados sobre o encosto, também de madeira, da cadeira, seu rosto, baixo, despejava-se coberto por um capuz cinza claro, enquanto sua camisa molhada secava inutilmente sob o casaco, também molhado.
Sentei ao seu lado.
- Já ligou para a ambulância? - Perguntei preocupado esperando uma resposta por diversos segundos - Cara... Você JÁ ligou para a Ambulância? - Não obtive nenhuma.
E foi esse o momento que caiu a ficha.
Foi esse o segundo do qual temi ser verdade os meus pensamentos.
Dei uma cotovelada de leve em meu amigo, ele se desajeitou e o braço que estava apoiado no encosto do banco, caiu sem força alguma. 
Sua mão segurava o seu celular.
E na tela brilhava o numero: 199, pronto para ser chamado.
Apenas um botão e a ligação seria completa.
Apenas um botão para que fossemos salvos.


- Porque ele não tinha apertado? - Me fiz essa pergunta mentalmente.

- Porque estava morto - Temi a resposta.

- Medo -

Retirei-lhe o capuz com um puxão.
E lá se aprisionava mais uma vez aquele cheiro.
Aquele cheiro de morte.
Aquele cheiro pálido que me deu ânsias mais uma vez.
Bolhas de sangue imensuráveis, já secas desciam por sua boca fechada.
Seus olhos abertos em uma expressão astutamente horrorosa, como que se estivesse visto um demônio em seus últimos segundos de morte.
Lágrimas.
Dessa vez não me permiti segura-las.
Deixando-as livres, para descerem se quisessem.
É... Elas desceram, uma atrás da outra, como se fossem antes organizadas para tal ordem.
Abaixei a cabeça.
O Seu celular começou a tocar.
Tocou mais de duas vezes antes de ser percebido.
Quando tomei coragem para tira-lo de sua mão, a ligação se encerrou, dando lugar a uma quinta chamada perdida.

- Bandeira -

Larguei o celular dele em cima do banco, ao meu lado, peguei o meu, e disquei um numero.

- Qual é a sua emergência? - Perguntou uma voz do outro lado da linha.
- Vi algumas pessoas mortas aqui!
- Qual a sua localização senhor?
Ela perguntou o meu nome, falou que estava mandando já uma equipe, e me pediu algumas informações de como foram as mortes, respondi tudo sinceramente e em alto tom.

Disquei outro numero.

- Man! - Gritou Bandeira ao atender o telefone - Sulcá ta ai?
- Tá.
- Tava falando com ele, e ele começou a tossir do nada, ai a ligação caiu, ou sei lá - Escutei uma risada inocente do outro lado da linha.
- Velho...
- Passe pra ele ai vá.
- Velho... - Continuei - Se tem amor a sua vida, não ligue mais pra mim, nem pra ele, não mande mensagem, não diga onde você está, não faça nada, se tranque em casa e não saía daí.
- É o que?
- E Nem na pior das hipóteses venha pra cá.
- Porque cara, qual foi? - Sua voz transparecia preocupação.
- Me escute... 

Uma silhueta em preto e branco bateu com uma força inimaginável na minha mão.
Não movi um centímetro, até o celular quicar duas vezes naquela mesma grama opaca e se misturar com um pouco de terra.

- Man... - Escutava a voz abafada do meu amigo o outro lado da linha - Man ta ai? - Quase inescutável.

A chuva, cansada de sua misericórdia, voltou a se despejar sobre nós, na forma de pequenos chuviscos, que davam lugar a um sorriso silenciosamente recém formado.

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