terça-feira, 12 de junho de 2012

Sépia.

- Você quer tomar sorvete é? - Perguntei a ela por telefone.
- Ééé... - Respondeu ela tentando fazer-se de meiga.

Segurava o celular no ouvido, com um pouco de força talvez, porque sua voz era um tanto quanto tímida.

Ao meu redor não se encontravam coisas muito interessantes para serem citadas com tamanha relevância, mas bem, eu estava na casa de um amigo meu, Sulcá, precisamente na sala. Onde se encontrava um conjunto de sofás, brancos, uma estante relativamente grande, de madeira, até com algumas fotos da família, dele e derivados, e uma mesa de vidro, que era onde repousava um notebook, uma impressora e alguns papeis aleatórios, mais pro canto esquerdo do aposento.

Neste momento Sulcá se encontrava em seu quarto, fazendo alguma coisa importante, que não era do meu conhecimento. Eu, sentado no sofá de dois lugares, que fazia parte do conjunto, com os pés apoiados despojadamente em um banco de plástico também branco, conversava com Elisa, uma garota que tinha conhecido a não mais de dois meses, emquanto Bandeira, outro amigo meu, repousava silênciosamente no outro sofá, pensativo e nostálgico.

- Vai poder aparecer aqui? - Perguntou Elisa.
- Trinta e cinco por cento de chances d'eu aparecer - Respondi sorrindo.
- Ahh, aparece vai! Faz mó tempão que não tomo sorvete.
- Então você quer que eu vá só pra você tomar sorvete é? - Ri.
- Não, claro que não vei - Ela também.
- Bem... Pensarei em seu caso senhorita.
- Ah velho, vamos vamos. - Ela tentava ser meiga, mas não conseguia.
- Tá certo tá certo, eu vou - Assenti convencido.
- Hihihi - Uma risadinha comemorativa.



Ao final das contas ela conseguia mesmo ser meiga.

- Umas quatro horas eu apareço ai.
- Certo - Ela assentiu.

A ligação foi encerrada.
Larguei o celular em cima do sofá, ao meu lado, e liberei um suspiro final fatídico.

- Qual foi? - Perguntou Bandeira.
- Umas quatro horas vou pegar um ônibus e ir tomar sorvete com Elisa.
- E você ta reclamando de que?- Sorri.
- Sei lá velho, tô um pouco cansado.
- Ah, para de reclamar ai vá.

O que mais me intrigava naquela conversa, é que eu estava nervoso, porém não demonstrava, e ele sabia como eu estava, e fazia o mesmo. Como se ele me conhecesse faz séculos.
Um clima absurdamente nostálgico, não triste, não feliz, apenas nostálgico pareou o ar por curtos momentos.

- Sulcá? - Chamei.
- Diga - Respondeu aquela sua voz abafada de dentro do seu quarto.
- Você vai sair que horas? - Perguntei por dentre a melancolia de Bandeira.
- Só vou tomar banho e já tô saindo - Tirando essas suas duvidas, ele vai  jantar em alguma pizzaria, lá por perto da casa de Elise, com alguns amigos. Então, se olharmos por este ponto, é menos tedioso eu ir com ele, e lá encontrar a garota do que ir sozinho. Já que nós dois vamos para quase o mesmo lugar.

Esperei ele tomar banho, abafei as minhas coisas em minha mochila, e saímos nós três.
Ficamos um bom tempo esperando os ônibus no ponto, Até que ele finalmente chegou, e para a infelicidade de Bandeira, o seu ainda não tinha aparecido, ele teve de esperar mais um pouquinho.
Entramos naquele ônibus medíocre, nos sentamos em duas cadeiras cinzas, no canto esquerdo do automóvel e nos dispomos a ouvir musica e conversar.

Na metade do percurso, por cerca das quatro e meia, eu, sorrateiramente, encostei a cabeça na janela e me dispus a largar os pensamentos, largar as conversas, largar a musica alta nos fones de ouvido, me desapeguei de tudo, de tudo que me prendia a este mundo material, repousando apenas no doce mundo dos sonhos. Sentindo apenas a pura essência do irreal.
Sonhando com árvores, cidades, cores, pessoas, borboletas, cubos, flores.
Sonhando com o mundo em sépia.
Neste momento, algo aconteceu.
Algo triste, nostálgico, irrelevante... Algo feliz, claro, importante... Não sei ao certo.

-Man? - Disse Sulcá me cutucando - Chegamos já...
Do lado de fora do ônibus, gotas pesadas de chuva batiam contra a janela, fazendo um barulho apocalíptico. A umidade do ar me fez respirar fundo, principalmente ao levantar da cadeira e andar cambaleante até a porta dianteira do automóvel. Estava chovendo. Porém apenas do lado de fora, sempre do lado de fora.
Corremos para o coberto de um mercado, deveras simples, onde se refugiavam várias pessoas da própria chuva, todas elas desconhecidas, a não ser pela balconista, e alguns funcionários.
Os produtos alimentares nas estantes, meio espremidos, traziam ao ambiente um tom de sépia, enormemente nostálgico.

- E agora? - Perguntou ele olhando para o que restava do céu.
- Vamos esperar né.
- Já são cinco e meia.
Agora que havia reparado, a luz estava cada vez mais amarelada, e alguns postes já estavam, inclusive, acesos, enquanto a lua aparecia debilmente em um canto astrológico já conhecido por todos, ou quase todos, nós.
A chuva estiou por alguns poucos minutos.
Suficientes para que Sulcá fosse para a pizzaria, e eu me adentrasse por entre todas aquelas casas que permaneciam nas penumbras da noite, até achar aquela mesma sorveteria, as luzes, graças, estavam acesas.
Logicamente, vazia, porém ainda reluzente, como se estivesse sido recentemente limpado pelas mãos mais sutis e delicadas. As caixas de vidro, que armazenavam as diversas cores pastosas estavam organizadas aleatoriamente por uma fila, que ficava no lado oposto do balcão, do qual um homem sentado bastava como atendente.
Ao lado das caixas de vidro, repousavam inúmeros potes, contendo guloseimas das mais diversas texturas, assim como caldas, cerejas e coisas relacionadas.
A chuva voltou escandalosamente.

- Vamos mesmo tomar sorvete na chuva uma hora dessas? - Perguntei segundos após a garota, molhada pela chuva, se aproximar.
- Ah porque não? - Apontei para o céu, chuvoso, para o relógio, estampado na parede da sorveteria e para ela - Vai me dizer que você não tá com vontade? - Ela disse, Sorrimos.
- Convenhamos...
- hã?
- Certo certo - Me rendi - você quer sorvete de que?
- Chocolate - Uma resposta rápida o suficiente para provar que ela havia estado pensando na escolha todo esse tempo.
- Clássico - deixei-a rindo, e me despus a ir pegar o sorvete.

Com apenas poucos passos, porém um tanto largos, já estava enterrando a colher no pote do sorvete escolhido, e colocando-o ao pires de plástico. Poucos segundos depois, passei no balcão, pesei, paguei e voltei a Elisa, sentando na cadeira ao seu lado.

- Aqui está milady - Disse a ela em um tom melodramático.
- Obrigada milord - Rimos.

Neste exato momento, ainda em sépia, por entre colheradas do sorvete sem cor, por entre palavras aleatórias largadas à febril noite das chuvas, por entre gestos incomuns feitos sem mais nem menos sentido algum, por entre olhares singelos, lançados simplesmente ao vento, o mesmo que arrastava aqueles mesmos alfinetes de chuva, se desenrolou uma conversa... Uma conversa justamente simples, porém claramente magnifica.

Ela tossiu.
- Eu disse que não ia dar certo esse sorvete - Afirmei com um sorriso sarcástico no rosto.
- Idiota - Me fez sorrir verdadeiramente.
- Mas é sério.
- Você não tem noção de como esse sorvete tá bom.
- Eu tenho - peguei a minha colher de plástico e tomei a minha quinta ou sexta colherada daquele sorvete marrom opaco.
- Não você não tem - Ela insistiu. Peguei, com o indicador, um pouco do sorvete derretido, que se acomodava linearmente em pingos na mesa de madeira e passei em sua bochecha. Sua expressão foi de surpresa total - Não você não fez isso! - Recebi um tapa. Dois tapas. Três tapas no ombro. E em meio a risadas, e sorrisos histéricos ela pegou o sorvete, na colher, com três dedos, e os passou imperceptivelmente em meu rosto.
Xinguei.

Por mais que nos exaltássemos, a chuva se acalmava, lentamente, aqueles grossos pingos de chuva se transformavam em apenas respingos inofensivos, que faziam as pequenas poças soltas e aleatórias no asfalto não ficarem tão quietas e o silêncio não tão absoluto. As casas, apenas em tons de cinza agora, se estendiam por muitos quilômetros, do preto ao branco apenas, nada mais.

- Veio uma dor de cabeça agora! - Comentou Elise debruçando sua cabeça por entre seus braços em cima da mesa sem cor, enquanto eu limpava o sorvete negro do meu rosto cinza.
- Tem remédio ai? - Perguntei em deboche - Olha na sua bolsa poh... - Não obtive resposta alguma - Elisa? - Perguntei me preocupando. Esperei alguns segundos apenas e arrastei a minha cadeira mais um pouco pra perto - Tudo bem com você? - Abracei-a pelos seus braços em um cinza bem claro, aproximando meu rosto ao dela - Ei... - Os seus olhos estavam cerrados com uma certa sutileza. Arrastei o seu rosto sem cor até que pudesse ter uma ampla visão do mesmo, e seu pescoço, inteiramente mole, se contorceu para o lado de uma forma pouco imaginável.- Deixe de me preocupar vá - Sorri, porém o sorriso se foi ao não conseguir escutar sua voz, que normalmente seria pouco tímida, porém esguia e clara.
Aproximei ainda mais meus olhos ao seu rosto.
Virei ainda mais sua cabeça, lentamente.
Uma peça, de seus cabelos negros, escorregou e caiu por cima de seus olhos, ela não se incomodou, como qualquer um faria.
Observando o notório, retirei a peça e a coloquei de volta, presa, por cima de sua orelha.
Pareceria meigo se não estivesse em preto e branco.
Seus olhos continuavam fechados, de um mesmo sutil e sincero jeito.

O sorvete, ainda derretendo, permanecia alojado no pires de plástico em cima da mesa de madeira, talvez esquecido.

As gotas de chuva deram um tempo ao silêncio, que se fez de absoluto desta vez. Obscuro.

Uma pequena brisa reinava sem som e muito menos sem cor. Preto e branco.

Tudo permanecia nas penumbras daquela sépia, agora, em escalas de cinza;
Até que o som de uma gota percorreu todos os espaços sonoros inimagináveis;
O som de uma única e bendita gota se esgueirou por dentre aquele mundo preto e branco;
Não era uma gota de chuva;
Ela deslizava por entre um lábio;
Escorria pelo queixo;
E desabava em uma pequena poça do mesmo, acima de uma mesa de madeira negra, já manchada.
E o mais incrível, é que aquela gota era a única coisa, naquele mundo sem som, e sem cor, que refletia o vermelho, e pingava sonoramente sob diversas delas mesmas;

Um vermelho incrivelmente vivo, de uma gota extremamente delicada.

- Sangue -

Minhas mãos começaram a tremer.
Empurrei de uma vez o seu corpo, virando-o para que se despojasse com as costas no encosto da cadeira, também de madeira.

- Está em todo lugar -

O liquido escorria pelo queixo da garota, passava pelo pescoço e manchava a gola de sua camisa, em contraste do vermelho. Uma poça fora formada, proveniente das gotas em cima da mesa, que agora estava pingando no chão cinza, e empapando o chão daquela mesma cor também. Aquilo parecia interminável.

- Vermelho -

Seus dentes, brancos, escorrendo fiapos de um vermelho amarronzado, quase seco;
Minhas mãos, em um cinza claro, machadas pelo mesmo liquido viscoso;
Um tom sépio avermelhado;
Meus olhos reviravam;
Minhas narinas deixaram de respirar faz muito tempo;
Um enjoo significativo já pairava em minha cabeça, latejando, lentamente, como se desfrutasse do meu sofrimento;

Ela cuspiu outra abarrotada de sangue, quase se engasgando.

Gritei, mas não saiu som algum.

Algo vibrou em meu bolso;
Começou a tocar uma musica.

- Meu celular -

Pensei duas vezes em atender;
As grossas gotas de chuva voltaram com tudo;
O barulho abafava minimamente a musica do toque.

Até que parou de tocar.

Fiquei em estado de choque, olhando para aquela cena horrorizado.
Até que voltou a vibrar, e logo a após a tocar.

E então eu coloquei a mão em meu bolso enquanto a chuva e o vento, sem cor, lavavam o vermelho da mesa, do chão e da garota, para um mundo do qual de fato pertencessem, diante a uma cena não mais em preto e branco, mais sim em sépia.

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